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O empoderamento feminino de A casa das Sete Mulheres

Comecemos esta discussão acerca da classificação. Faz-se necessário enquadrar este livro em um romance histórico? Biografia? Ficção histórica? Qual a melhor categorização?

A ficha catalográfica da presente edição aponta-o como Ficção Brasileira. E só. Não contentes, com isso, faz-se oportuno informar, embora seja desnecessário, que o livro inspira-se na Revolução Farroupilha, para compor o quadro de personagens que apresentam como plano de fundo a História que mudou a vida de muita gente que morava nos pampas do Sul. O presente romance foi escrito por uma genuína gaúcha, a Letícia Wierzchowski e teve repercussão imediata, sendo adaptada com sucesso para a TV em 2003 e com direitos autorais vendidos para diversos países do mundo.

Tem uma frase do romance que simboliza bem esse aglomerado de acontecimentos que levaram a mortes de vidas e sonhos:

"Do mesmo sonho que se vivia, também se podia morrer" (pág. 11)

O romance A casa das sete mulheres começa a narrar desde 1835, o ano novo no qual Manuela, a narradora da história, inicia a escrever seu diário que teremos conhecimento na íntegra. No festejar das comemorações do ano que estava por vir, 1835, Manuela, a jovem de sensibilidade aguçada, vê nos céus uma estrela de fogo, que ela interpreta como sangue e morte nas terras gaúchas. No contexto nacional, a monarquia era governada pelo infante Dom Pedro II, que incapaz de governar todo o país, não demonstrou interesse nem importância para a região sul. Com o aumento de impostos e os inúmeros descontentamentos, não demora até que a ecloda a Revolução Farroupilha, anunciada pelos tradicionais rádios da época à família de Bento.
Bento Gonçalves decide, então, proteger as mulheres de sua família numa Estância da Barra, à beira do Rio Camaquã até que a guerra passe. Junto às mulheres, Bento também isola os quatro filhos pequenos da família.
São pelos cadernos de Manuela que saberemos os sentimentos e acontecimentos que motivaram toda a família de Bento Gonçalves da Silva (líder do exército Farroupilha da província). Temos a perspectiva de Manuela porque ela se envolve com o famoso personagem histórico italiano Giuseppe Garibaldi, romance que de fato ocorreu e foi importante para o desenvolvimento da história que se conta.
            No entanto, o tempo passa e a guerra não finda. E vamos acompanhar o ritmo da guerra pelos cadernos de Emanuela, assim como vemos a vida sua e das outras seis mulheres tomarem rumos diferentes para sempre. Essas sete mulheres das quais o título se refere são Ana Joaquina, Maria Manuela (irmãs de Bento Gonçalves, sendo a primeira a dona da estância e a última, viúva de Anselmo); Caetana (esposa de Bento); Perpétua (filha de Caetana e Bento) e as primas Rosário, Mariana e Manuela (filhas de Maria Manuela).
            Além dessas mulheres, há ainda a irmã do general, Antônia, que vizinha à Estância da Barra, está sempre presente nos acontecimentos que se passa na casa de Bento Gonçalves. Ambas as irmãs de Bento sofrem por esperar seus maridos, filhos e parentes que estavam na guerra e fizeram esforços para que as mulheres da casa tivessem um pouco de sanidade mental.
É do ponto de Manuela, a sensível jovem, que teremos mais posse de informações acerca dos acontecimentos que se arrastam mais do que deveria, deixando a família aflita e angustiada com a demora dos que foram à guerra e dos que ficaram esperando. Depois da partida dos homens para a guerra (que dura 10 anos), drama não falta às mulheres que ficaram reclusas na recôndita fazenda. Na ânsia de vê-los de volta, as mulheres se valem de frequentes novenas, orações, preces que elevam aos céus em busca de salvação para os seus que naquele momento estão em derramamento de sangue pela pátria gaúcha.
As atitudes de Caetana, a matriarca da família, a general que mostra como suas preocupações refletiam sempre o bem-estar da família, mantendo a sanidade mesmo nos dias mais aflitos. Caetana agia como conselheira, esposa, mãe, amiga e irmã de todos, fiel ao esposo Bento Gonçalves, devota-lhe um amor exemplar mesmo em meio aos abalos da guerra e distante do marido durante anos. Já Maria Manuela, irmã de Bento, é reservada e completamente amarga.
A cada batalha, as correspondências entre os membros da família contam os números de mortos, as mortes de outros amigos, mostrando o drama de mulheres que se veem impossibilitadas de realizar algo: são agonizantes noites na Estância, orações infinitas e romances impossíveis. É a partir de então que constatamos que as perdas e os dramas não são apenas relacionados à guerra. Uma guerra que, tristemente, arrancou a vida de gente inocente e abalou a fé de outro tantos, uma vez que as vigílias de oração em prol do cessar da guerra eram constantes. É, sobretudo, a saudade dos familiares que sofrem os que ficam, uma vez que as notícias que chegam até elas são escassas e a preocupação não para. À medida que o tempo passa, a fé diminui e o fim da guerra se parece cada vez mais distante.
Mas é um romance que também mostra como as mulheres são empoderadas e podem interferir no rumo das coisas. Caetana, mulher de Bento, é um exemplo de matriarca que sabe diligentemente gerir a casa das sete mulheres. Apesar de narrar os dez anos da Revolução Farroupilha, a mais longa guerra civil do continente, vemos tudo pelo ponto de vista feminino. E isso importa porque diferente de outros romances, nos quais se tem a visão preponderante masculina, aqui é a ótica e os dramas das parentas de Bento Gonçalves que irá prevalecer.
Entre as mulheres da casa, Manuela é uma das mais cativantes. Desde cedo, ela foi prometida aos 15 anos ao filho de Bento Gonçalves, o seu primo Joaquim. No entanto, ela se apaixona perdidamente por Giuseppe Garibaldi. O italiano, como se sabe, divide seu amor com Anitta Garibaldi. Embora a personagem Anita apareça pouco na narrativa, ela ganha destaque pela bravura, valentia e ousadia em seguir seu companheiro na batalha. Garibaldi era um italiano andante e acostumado com batalhas. Veio ao Rio Grande do Sul objetivando motivar as batalhas, seja na construção de navegações, seja nas próprias batalhas. Numa dessas paragens, Garibaldi vai até a Estância de seu amigo, Bento. É nessas visitas que a bela Manuela se apaixona por ele. Ao partir, ela promete espera-lo. O sofrimento de Manuela é o mais empático, pois seu amor por Garibaldi se vê ameaçado quando este encontra sua amada Anita.
As outras meninas, Manuela, Mariana e Rosário, assim como Perpétua, desde jovens, tiveram que amadurecer muito rápido, diante das mudanças. Ambas abdicaram de festas, distanciadas de serem cortejadas, foram isoladas, sofrendo e aprendendo a lidar com as perdas. Sem dúvida, os encontros e amor de Rosário e Steban é algo que sai um pouco do drama da guerra e ajuda a intercalar as narrativas de guerra com a perspectiva do romance.
Letícia Wierzchowski construiu personagens principais e terciários de modo muito bem e mesmo aqueles que não são tão importantes para a trama, como soldados, por exemplo, ganham “almas” de personagem efetivos.
A escritora ainda escreveu mais dois livros contando a saga da família de Bento Gonçalves, transformando A casa das sete mulheres numa trilogia que segue com Um farol no pampa e Travessia, nos quais ambos se propõem a contar os desdobramentos de outros personagens, como a história de amor de Garibaldi e Anita, por exemplo. Enfim, o romance, como um todo, mostra o domínio de ações advindos de atitudes das mulheres, pois são elas as protagonistas desse livro de 461 páginas que nos imerge em guerras, conflitos familiares, amores e muita dor.
A nova edição de A casa das sete mulheres segue o mesmo padrão dos demais títulos. Tem ilustrações de Chico Baldini, que lindamente, combina com as capas. A única coisa que sinto falta nessas edições é de um prefácio crítico, pois ainda que a autora traga algumas informações no prólogo, edições como estas, certamente, ficariam mais ricas com algum prefácio. Todos os livros da série estão foram editados pela Bertrand Brasil, que fez um excelente trabalho de edição e revisão.



SOBRE A AUTORA:

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre, RS, em1972, e estreou na literatura em 1998 com o romance O anjo e o resto de nós. A autora é considerada uma das maiores revelações da literatura nacional do início do século XXI. Uma das raras escritoras a perceber e a traduzir, em palavras, a personalidade, o sentido e o poder de ação de personagens e cenários brasileiros. Em 2003 o romance A casa das sete mulheres foi adaptado pela Rede Globo em uma série de 50 capítulos. Desde então, a produção televisiva já foi veiculada em quase 30 países, e a obra de Leticia ganhou caminhos internacionais. Ela tem livros editados na Espanha, Portugal, Grécia, Itália e Sérvia-Montenegro.

CURIOSIDADES:

  • O livro Garibaldi e Manoela:uma história de amor conta mais, de forma resumida, a história de amor do casal protagonista.
  • Na minissérie da TV Globo, Manuela foi interpretada lindamente por Camila Morgado.
  • Abertura da minissérie inspirada no livro pode ser vista aqui.
  • Aqui você confere uma entrevista com a autora .

FONTES E REFERÊNCIAS:

·         Editora Record        Skoob /         Editora Intrínseca 

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