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O versátil talento de Emily Brontë e sua relação poética: grandiloquência e estética

O morro dos ventos uivantes (que título mais romântico) é um clássico da literatura inglesa de autoria de Emily Brontë, uma das três irmãs que possuíam uma veia literária plausível e proeminente. No romance, vemos como a escritora inglesa impõe uma marca extremamente romântica naquele que seria um dos grandes ícones da literatura universal.
Poder-se-ia dizer que a escritora é conhecida apenas por este grande romance, mas quis a sua irmã que o lado lírico e poético de Emily fosse também conhecido do grande público. Sob os pseudônimos Currer, Ellis e Acton Bell, Charlotte, Emily e Anne Brontë, respectivamente, publicaram em 1846 um livro de poemas que não obteve muito sucesso.  Só muito tempo depois a poesia das três irmãs iria mostrar a força que tinha.
Sobre isso, é importante notar como o cânone literário ocidental tem privilegiado aquela produzida pelo branco, ocidental e de classe social elevada. Zolin (2009) lembra que

Para ter assegurado o direito de falar, enquanto o outro é silenciado, o sujeito que fala se investe de um poder advindo do lugar que ocupa na sociedade, delimitado em função de sua classe, de sua raça e, entre outros referentes, de seu gênero, os quais o definem como o paradigma do discurso proferido. Historicamente, esse sujeito imbuído do direito de falar é de classe média-alta, branco, e pertencente ao sexo masculino.

O livro só foi publicado no Brasil em 1944, mais de cem anos depois, fazendo parte da famosa Coleção Rubáiyat, da editora José Olympio, em capa dura e com tradução de Lúcio Cardoso, o autor do clássico "Crônica da casa assassinada".
No apagar das luzes de 2016, a Editora Civilização Brasileira, editora do mesmo Grupo Editorial da José Olympio, reedita e publica o livro em sua versão bilíngue. Trata-se de uma grande oportunidade de contactar a poesia Brontëana mais de perto e perceber as nuances da tradução livre de Lúcio Cardoso. Dizemos que se trata de uma tradução livre porque Lúcio não fez aquela famosa tradução literal dos versos, ou seja, a tradução não é uma simples transcrição dos versos escritor em inglês para o português moderno.  Ésio Macedo Ribeiro (2016, p. 9), que assina a apresentação da obra ressalta que

A Teoria da Transcrição de Haroldo de Campos, quando este diz, em suma, que o tradutor é um recriador. Lúcio Cardoso não antecipa tal teoria só neste livro, mas em toda poesia e prosa por ele traduzida ao longo da década de 1940.

Assim, ao iniciar a leitura do livro é bom sabermos que o trabalho de Lúcio Cardoso contribuiu muito para a compreensão e entendimento dos versos. A tradução livre proporciona que o leitor entenda o sentido principal do poema em detrimento da tradução feita palavra por palavra. Dessa forma, ao termos contato com a edição bilíngue, a editora propicia ao leitor uma leitura analítica, onde este possa encontrar as semelhanças e diferenças entre as duas versões, como a sonoridade, o ritmo, aliteração e até mesmo o número de sílabas poéticas de cada verso. Mas nada disso incomoda, pois é um hábito bem comum no universo da tradução. Ao contrário, a tradução foi essencial para que a obra de Emily Brontë fosse compreendida e lida pelos brasileiros. Nada da tradução interfere, por exemplo, na essência da mensagem que cada poema passa.
O livro é composto por 33 poemas, que foram selecionados da obra original por Lúcio Cardoso. Ésio, inclusive fala da dificuldade que ele teve para confrontar as versões, uma vez que a escolha feita por Lúcio realizou-se por meio de várias edições da obra de Emily. A maioria dos títulos dos poemas, inclusive, foi opção de Lúcio Cardoso. A maioria dele, pode-se perceber, que tem no título o primeiro verso do poema.
O poema que abre a coletânea é “The night-wind” (O Vento da noite), poema que dá nome ao título do livro. Em seguida vem poemas que trazem como tema a solidão noturna, a fuga para um local calmo, noite, pai, família, a figura de Deus e invocações a figuras divinas. Os poemas também transparecem uma certa atmosfera misteriosa, na qual a alma, o brilho, melancolia, o escuro e uma composição de antíteses fazem parte do lirismo da autora.
A seguir, transcrevemos o poema que dá nome ao livro.

O vento da noite

À meia noite de verão, mole como um fruto maduro,
A lua sem véus lançou a sua luz
Pela janela aberta do parlatório,
Através dos rosais onde o orvalho chovia.

Sentada e perseguindo o meu sonho de silêncio,
A doce mão do vento brincava em meus cabelos
E sua voz me contava as maravilhas do céu.
E a sua terra era loura e bela de sono.

Eu não tinha necessidade do seu hálito
Para me elevar a tais pensamentos,
Mas um outro suspiro em voz baixa me disse
Que os negros bosques são povoados pelas trevas.

A folha pesada, nas águas da minha canção,
Escorre e rumoreja como um sonho de seda;
E, ligeira, sua voz miriápode caminha,
Dir-se-ia levada por uma alma fagueira.

E eu lhe dizia: “Vai-te, doce encantador.
Tua amável canção me enaltece e me acaricia,
Mas não creio que a melodia desta voz
Possa jamais atingir o meu espírito.

Vai encontrar as flores, as tuas companheiras,
Os perfumes, a árvore tenra e os galhos débeis;
Deixa meu coração mortal com suas penas humanas,
Permite-lhe escorrer seguindo o próprio curso.”

Mas ele, o Vagabundo, não me queria ouvir,
E fazia seus beijos ainda mais ternos,
Mais ternos ainda os seus suspiros: “Oh, vem,
Saberei conquistar-te apesar de ti mesma!

Dize-me, não sou o teu amigo de infância?
Não te concedi sempre o meu amor?
E tu o inutilizavas com a noite solene,
Cujo morno silêncio desperta minha canção.

E quando o teu coração achar enfim repouso,
Enterrado na igreja sob a lousa profunda,
Então terei tempo para gemer à vontade,
E te deixarei todas as horas para ficar sozinha…”

(Tradução de Lúcio Cardoso)

É uma grande oportunidade para o leitor brasileiro se aproximar de um outro lado quase desconhecido de Emily Brontë. Às vezes pode-nos soar estranho ver a tradução livre, mas logo percebemos que foi a melhor opção. Denise Bottmann, administradora do excelente blog (naogostodeplagio.blogspot.com/) assina a orelha do livro e define-o como um diálogo feito entre a edição em inglês e a transcrição para o português.
É de fato um importante acontecimento no mercado editorial brasileiro. Em tempos que são publicados poemas de padaria em forma de livro, a publicação desse clássico vem solidificar a importância das Brontë para a literatura ocidental. Seus temas até hoje influenciam outros na criação poética. Infelizmente a edição não informa a fonte das fotos usadas, mas a folha de guarda contém uma linda imagem de uma garota que ri para o leitor. Provavelmente seja Emily, não tenho certeza, mas é uma linda folha de guarda. Como a própria edição informa, é o único livro no Brasil que reúne exclusivamente a poesia de Emily Brontë. Um livro indicado para todos os leitores, sem restrições de idade. Mas gostaria de indicar prioritariamente aos acadêmicos de Letras, para que seja feito mais estudos da poesia de Emily.

SOBRE A AUTORA E O AUTOR
Emily Jane Brontë nasceu em Thornton, Inglaterra, em 1818. Era a quinta filha de uma família de seis filhos que se mudou, em 1820, para Haworth­, cidade a oeste de Yorkshire, na Inglaterra, onde Emily, uma jovem tímida e introspectiva, passava seu tempo tentando driblar a dura realidade da vida precária e monótona do campo. Com suas irmãs, Charlotte e Anne, publicou, em 1846, uma coletânea de poemas assinada com os pseudônimos Ellis, Currer e Acton Bell, respectivamente. Mas seu grande sucesso literário se deu com o romance O morro dos ventos uivantes, publicado em 1847. Inicialmente a obra foi mal compreendida pelos ingleses, mas com o tempo foi alçada a clássico da literatura mundial, recebendo várias adaptações e transposições para o cinema. Emily Brontë morreu jovem, aos 30 anos, em Haworth, em 1848, vítima da tuberculose.
Joaquim Lúcio Cardoso Filho nasceu em Curvelo, Minas Gerais, em 14 de agosto de 1912. Passou sua primeira infância em Belo Horizonte, onde fez o curso primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Em 1923 mudou-se para o Rio de Janeiro, e apesar de um rápido retorno a Belo Horizonte no ano seguinte, tempo em que estudou no Colégio Arnaldo, voltou a se estabeecer no Rio em 1929, onde publicou, em 1934, seu romance de estreia, Maleita. Depois disso, escreveu outros romances, peças de teatro, contos e fez traduções, atingindo o auge de sua carreira com Crônica da casa assassinada, romance publicado em 1959, que se tornou um clássico da literatura brasileira. Em 1962, um derrame cerebral o fez perder os movimentos do lado direito do corpo e a fala, levando-o a interromper sua produção literária. Passou, desde então e até o fim da vida, a se dedicar à pintura. No ano de 1966 recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1968.

FONTES E REFERÊNCIAS:
ZOLIN, L. O. A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da pós-modernidade, IPOTESE, Juiz de Fora, v.13, n. 2, p. 105-116, jul./dez. 2009


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