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Hot Sul - Laura Restrepo


Se o conceito aristotélico é valido de que a arte imita a vida, então o livro Hot Sul (Hot Sur, Tradução de Luís Carlos Cabral, 518 páginas, Bertrand Brasil, 2016, R$ 59,90), livro da escritora Laura Restrepo, consegue cumprir este papel da arte literária.

 
         Resumidamente, o livro conta a história sob o ponto de vista de três personagens: Cleve Rose, María Paz e Ian Rose, este último é pai de Cleve. Os três personagens possuem fortes vidas dramáticas e se incluem em temas pertinentes da atualidade. Cleve Rose é um professor, contador de histórias, que trabalha em oficinas de escrita criativa no presídio de mulheres que tem o nome de Manninpox. Outro ponto de vista contado na história vem da María Paz, pseudônimo de uma jovem imigrante colombiana que vive nos Estados Unidos presa justamente no presídio Manninpox. A penitenciária fica nos arredores de Catskill, cidade onde habitam os personagens desta história. Reside aqui, neste ponto de vista da história, para mim, os mais comoventes trechos da narrativa que além de ser crítica em relação aos imigrantes, aborda-o com muita delicadeza. Outro ponto de vista da história é narrado pelo pai de Cleve, o Ian Rose.
         A priori, não percebemos muita conexão entre os capítulos. Mas no decorrer da narrativa encontramos os pontos convergentes. O começo do livro é visceral, cru e denso: dois jovens tentam entrar numa seita religiosa (Penitentes Brothers do Sangue de Cristo), localizada no sul estadunidense. É um belo começo de um thriller que envolve e sustenta-se por mais de 500 páginas.
         Logo depois à empreitada dos dois jovens, a narrativa dá um salto de 30 anos e retrata e terrível crime em Nova York: um homem, mesmo de assassinado, tem seu rosto dilacerado, colado no tecido vermelho e o corpo é pregado numa cruz. Este não é o primeiro assassinato da estória. O thriller de Laura Restrepo ainda apresenta perfis psicopatas, possessividade e ciúme que compõem uma narrativa que prende o leitor na história que leva o Sr. Rose a investigar todo o caso até culminar no início da resolução do conflito e envolver as outras histórias paralelas. Embora a narrativa permaneça um pouco morosa nas primeiras partes, a partir da terceira parte, mais ou menos, que é onde começamos a ser informados das conexões das histórias, ela fica mais veloz e também mais envolvente.
         A protagonista da história, María Paz, é apontada como assassina de seu próprio esposo. Isso chega até nós, leitores, de modo curioso: Ela participou, no passado, de uma oficina de escrita criativa ministrada por Cleeve, quando ela estava na penitenciária Manninpox. Nesta oficina, todos são convocados a escrever uma espécie de autobiografia. Muito tempo depois, quando não mais existiam as oficinas de escrita criativa, o pai de Cleve, Ian Cleeve recebe uma correspondência contendo os manuscritos destas memórias.
E é por meio destes seus manuscritos que conhecemos as características mais intrínsecas à natureza de María Paz. Suas memórias e as anotações nos cadernos de Cleve Rose dão-nos pistas de como são engendrados os mistérios que Ian Rose conta a um interlocutor que conheceremos apenas no finalzinho da narrativa.
O livro contém um teor crítico com relação ao sonho americano, à desilusão e falta de reconhecimento que os latinos americanos enfrentam na América. Os próprios empregos as quais estes imigrantes latinos são submetidos vira motivo de crítica latente no livro de Restrepo. Mas não é só isso, a autora compõe críticas ao regime de trabalho, ao sistema carcerário americano no qual os estrangeiros são apinhados e ainda a própria condição de ser mulher, já que a maioria das críticas vêm, impermeada, nas falas de María Paz, seja em suas memórias, manuscritos ou ainda na própria fala que surge nos discursos diretos que a autora nos coloca.
Talvez a autora tenha buscado suas referências em outros clássicos americanos como As vinhas da Ira ou ainda O Lobo da Estepe. O certo é que sobretudo por sua sensibilidade com temas atuais como a questão do imigrante e a psicopatia que a narrativa nos cativa com os acontecimentos que mimetizam a realidade. É necessário atenção nas três primeiras centenas de páginas. Daí em diante, é preciso mais fôlego para acompanhar o ritmo da história. E é incrível como as histórias se conectam numa trama imbricada por personagens sempre envoltos em aporias.
A edição do livro no Brasil ficou a cargo da Bertrand Brasil, que traz sutilmente na capa a modernidade e o hush hush da narrativa em cores quentes com com a primária verde. As linhas são como trilhos que nos instigam a uma leitura da história a partir da capa. O papel e a fonte, que se unem à diagramação, proporciona ao leitor mais facilidade de leitura. É leitura para mais de uma semana e deixar saudade de María Paz.

Sobre a autora: 


Nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1950. Formou-se em letras e filosofia pela Universidad de los Andes. Seu primeiro livro, História de um entusiasmo, veio a público em 1986. Escritora reconhecida internacionalmente, traduzida em mais de doze idiomas, foi agraciada com o Prix France Culture (França) e o Prêmio Sor Juana Inês de la Cruz (México) pelo romance Dulce compañia







Fonte: Editora Record / Skoob

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