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Um registro cru para não esquecer jamais o Holocausto

"A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz. (...) As recordações que jazem em nós não estão inscritas na pedra, mas muitas vezes se modificam ou mesmo aumentam". (LEVI, 2016 p.17)


A memória desempenha aqui, em Os afogados e os sobreviventes: Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades (Editora Paz e Terra, tradução de Luis Sérgio Henriques, 2016, 168 páginas, R$ 29,90) o papel de o fio condutor.O livro do qual falaremos agora inclui-se na linha da literatura de testemunho, onde a memória representa um importante fator para evocar, conservar e formar as lembranças. Sobre a literatura de testemunho, Lyslei Nascimento comenta que 



"O sobrevivente, aquele que testemunha e/ou sofre o infortúnio da violência – possui, basicamente, dois sentimentos paradoxais em relação ás lembranças que podem intervir no ato de contar suas experiências. O primeiro é o do silêncio. Não contar para esquecer. Enclausurar as imagens, os sons e os cheiros do sofrimento para que o tempo se encarregue de apagá-lo. O outro é narrar para libertar." (NASCIMENTO, 2011, p. 93) 


E assim Primo Levi, nome quase sempre associado aos melhores testemunho da Segunda Guerra, faz: narra como forma de libertação.
Nascido em Turim, no início do século (1919), Levi formou-se em Química e em 1944, por ser judeu, foi deportado para Auschwitz. Viveu, presenciou e assistiu o horror de perto. Só saiu de lá no término da guerra e desde então dedicou-se a testemunhar, fazendo um balanço de suas lembranças. Apesar de sua obra mais conhecida ser É isto um homem? (1946, Editora Rocco), o livro Os afogados e os sobreviventes, além de configurar como pertencente à trilogia de Ausschwitz, é um relato pungente, sincero e cru de um período negro da História.

No primeiro capítulo da obra, Levi permite-se a falar da importância da memória. Neste capítulo o autor menciona Jean Amèry, o filósofo do suicídio, que será por ele também citado no capitulo 8.

Ainda no capítulo 1, o autor fala da realidade da guerra e da temporada no Lager, que pode ser distorcida na recordação. Resumidamente, o capítulo 1 fala das angústias de rememorar, a (re)construção do passado das vítimas e conclui afirmando o livro "esembebido de memória, ainda que distante" (sic).

O capítulo 2 (A zona cinzenta) o autor discorre sobre a função dos funcionários do Lager, o sistema concentracionário das tarefas, o ritual dos ingressos e ainda o privilégio de alguns prisioneiros. E é aqui onde Levi nos leva a pensar a respeito do poder que alguns pertencentes às minorias exerciam sobre os demais, ou ainda de quão desumano era ver os próprios semelhantes exercerem papeis tão vis ali.
"A ascensão dos privilegiados, não só no Lager mas em todas as situações humanas, é um fenômeno angustiante", afirma Levi. Com isso, ele apresenta a condição da vítima que era "selecionada" para empoderar os demais e criar em escala menor a hierarquização do Estado totalitário. Mas nem todos aceitavam essas funções de modo feliz. Levi cita o caso dos Esquadrões Especiais, que em sua maioria era constituída por judeus que iriam mais tarde eliminar outros judeus no campo de concentração. Conta Levi que um deles declarou:
"Ao fazer este trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou então se acostuma." Outro disse: "Por certo, teria podido matar-me ou deixar matar, mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para testemunhar. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros: somos como vocês, só que muito mais infelizes".
Mas o capítulo 2 é de longe o mais dramático. O caso de uma jovem que é encontrada ainda viva amontoada na câmara de gás e mesmo assim morta depois é de chocar. 
O capítulo 3 trata da Vergonha ou ainda do sentimento de culpa. Mas qual culpa? Pergunta Levi. Mais na frente ele responde usando outros questionamentos. Era comum alguém se  envergonhar por estar vivo no lugar de um outro, por exemplo.
A comunicação é o grande tema do capítulo 4. E sobre isso Levi fala de teorias, da incomunicabilidade entre os prisioneiros, a incompreensão, visto que muitos prisioneiros não falavam alemão, mas sim italianos, francês e outras línguas.
O capítulo 5 foi pra mim o mais triste. "Violência inútil" trata de casos que muitas vezes queremos fechar os olhos para não ler: são relatos de mortes diárias, torturas, massacres, os comboios, a desnutrição, debilitações, o constrangimento dos excrementos, as tatuagens contendo o número dos prisioneiros e outras barbaridades que nos dão a noção do que foi estar naquele inferno.
O capítulo 6 (O intelectual em Auschwitz) trata basicamente do contato que Levi teve com o filósofo do suicídio, Jean Améry e seus estudos intelectuais.
No capítulo 7 Levi descreve os estereótipos  (muitos) a que os judeus foram submetidos antes, durante e após a Guerra. Sobre isso, Levi apresenta a concepção que muitos tem sobre a condição de prisioneiro, a possibilidade de fuga e as insurreições.
No final do livro, o último capítulo apresenta "Cartas de Alemães", que foram remetidas a Levi logo após a publicação de É isto um homem?. Sobre estas cartas, Levi comenta como os alemães tentaram se redimir após o fim da Guerra. Em sua maioria não são cartas simpáticas. Levi leva-nos a questionar até que ponto é possível (ou não) compreender os alemães. As respostas dada pelas cartas demonstram uma certa vergonha por este acontecimento histórico.
Levi encerra o livro com uma breve Conclusão. Dela posso tirar uma máxima:
"O Diabo não é necessário: não se precisa de guerras e de violência, em nenhum caso."


Um livro angustiante, real, com relatos crus relatos por um dos maiores intelectuais italianos. Sobrevivente de Auschwitz, Levi teve uma morte cercada de mistérios.  No dia 11 de abril de 1987 após receber a correspondência do carteiro, que havia subido ao terceiro andar, Levi é encontrado caído no chão do edifício, junto ao elevador. Muitas hipóteses e poucas certezas sobre isso. mas  Levi deixou-nos como herança um pungente relato dos dias no inferno. Indicado para todo e qualquer estudante de História ou Letras, sobretudo para quem pesquisa a linha "Memória e Testemunho", o livro de Levi é uma obra obrigatória. Indicado ainda para todos aqueles que se interessam pela temática e aqueles que não querem esquecer jamais o sofrimento dos afogados e sobreviventes.

Depois de muito tempo fora do catálogo, a Editora Paz e Terra lançou o livro recentemente com uma nova capa, excelente diagramação e uma tradução cada vez mais fiel à língua italiana. 
 
Sobre o autor: Primo Levi (Turim, 31 de julho de 1919 — Turim, 11 de abril de 1987) foi um escritor italiano. Escreveu memórias, contos, poemas, e novelas. É melhor conhecido por seu trabalho sobre o Holocausto, em particular, por ter sido um prisioneiro em Auschwitz-Birkenau. Seu livro É isso um Homem? (título da tradução portuguesa: Se Isto É um Homem) é considerado um dos mais importantes trabalhos memorialísticos do século.

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Fonte: 

NASCIMENTO, Lyslei. Memórias e testemunhos: a Shoah e o dever da memória. Ipotesi – Revista de estudos literários. Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2011/05/10-Mem%C3%B3rias-e-testemunhos-a-Shoah-e-o-dever-da-mem%C3%B3ria.pdf
 Acesso em: 29 maio 2016

 Adrian Gramary, Levi: a queda do sobrevivente, Saúde Mental, Volume VIII, nº 6, novembro de 2006, disponível em http://www.saude-mental.net/pdf/vol8_rev6_leituras1.pdf, acessado em 02 de junho de 2016.
 
Editora Rocco   / Editora Record / Skoob


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