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Misto de memória e ficção, este livro convida-nos à uma viagem à África



O título do livro deve-se a uma máxima que existe na África. Enquanto uma coisa pode ser verdade ao amanhecer, outra pode ser mentira ao meio-dia. É o próprio Hemingway que traz como epígrafe do livro a frase elucidativa:

Na África uma coisa é verdade ao amanhecer e mentira pelo meio-dia e não devemos respeitá-la mais do que ao maravilhoso e perfeito lago bordejado de ervas que se vê além da planície salgada crestada pelo sol Atravessamos essa planície pela manhã e sabemos que tal lago não existe. Mas agora está lá e é absolutamente verdadeiro, belo e verosímil.  (HEMINGWAY, pág. 02)

E é misturando este tom de memórias com um pouco de ficção que Hemingway vai tecendo a história de Verdade ao amanhecer (True at first light, Tradução de Mário Pontes, Bertrand Brasil, 2015, 462 páginas, R$ 31,90 -55,00). A edição anterior trazia como subtítulo "Memória Ficcional".

O livro, narrado em primeira pessoa e ambientado na África, foi escrito no último safári na África feito por Ernest, pois sabe-se que ele e sua família fazim isso com frequência. Ernest exercia nesta época a função de guarda florestal substituto.
Portanto, em 1953, quando o escritor já estava voltando com sua esposa Mary de uma temporada no Quênia, ele registrou tudo em esparsos escritos que só depois de muito tempo (postumamente) seriam conhecidos pelo público leitor graças ao seu filho Patrick, que em meio a polêmicas acerca da publicação, resolveu tornar público os últimos escritos do seu pai.
Digo polêmico porque o livro foi organizado por Patrick Hemingway e isso quer dizer que pode (conjecturo) ter ocorrido alguma interferência do filho na escolha e na ordem dos escritos. Quando Patrick Hemingway decidiu publicar o manuscrito original, ele fez muitos cortes com a justificativa de o manuscrito original estar como um "diamante bruto". (sic). A expressão usada pelo filho deve-se ao fato de que o seu pai era extremamente exigente com relação aos seus livro. "Adeus às armas" foi reescrito 39 vezes! Então é de se estranhar quando o leitor conhecedor da prosa Heminguiana não veja a famosa qualidade em alguns parágrafos.

O alvoroço causado no mercado editorial no ano de 1999 justamente por este ser uma espécie de relíquia literária do ícone americano autor de "O Velho e O mar". Sabemos que nestes casos, ainda que o escritor tenha escrito uma bula ou até mesmo uma receita de chá, o sucesso é imediato. O último exemplo disso é "Vá, coloque um vigia", da escritora também americana Harper Lee. No caso de Hemingway é um pouco estranho que depois de quase 50 anos um novo livro possa vir à tona como um simples legado do autor.

Mas vamos ao presente livro, que é bem escrito, rico em lirismo, humorado e belo, por sinal.

O livro se inici quando Pop, o famoso caçador chefe do sáfari, repassa a Ernest Hemingway a tarefa de de guardar a área onde está localizado o safári. Ao mesmo tempo que se dá essa trasnferência de funções, dois povos africanos que se opõem à invasão dos ingleses em seu território e ao seu poderio colonial, desenham um conflito preliminar que poderá desencadear uma guerra com aqueles que visitam o safári. Concomitante a este conflito, a esposa de Ernest, viciada em gin, está obcecada com a ideia de perseguir um leão até matá-lo. Durante o safári, o casal se vê numa crise existencial a respeito do seu casamento. Isso porque o narrador mantém um relacionamento com Debba, uma mulher africana, construindo uma espécie de "casamento secundário". Debba seria o oposto de Mary na vida do autor. Importa observar que a crítica literária observou a ênfase com que Patrick, o organizador, deu a Debba, quando no volume original, a personagem detinha pouco destaque. Mary não se conforma com a situação de dividir seu marido e acaba por se viciar mais no gin como válvula de escape. O fiho do escritor também atenuou bastante este fato.
Fora isso, há muita coisa que o livro retrata: a complexidade do escritor dirigir os conflitos entre os povos que viviam em conflito, tais como os Bantu e Massaï, o paternalismo existente entre os brancos e negros, o poder fabuluso de contar histórias de Ernest Hemingway aos africanos, os costumes, valores, histórias e tradições das tribos africanas, bem como a exatidão com que o escritor dá aos acontecimentos ali no safári. Ernest, com sua escrita definidora, narra a exuberância da natureza, o ataque do leão, as noites nas selvas africanas e ainda a liberdade de viver num lugar ermo e tão curioso.

Por fim, temos uma escrita objetiva, detalhista, rica de informações sobre o povo no Quênia no idos dos anos 50 do século XX e uma beleza (não tão quanto os diamantes lapidados pelo próprio escritor como em "Por quem os sinos dobram") que ainda assim encanta os olhos de um leitor. Apesar de haver diversos livros sobre safári e este ser o último livro escrito por Hemingway, eu não o recomendo para quem está tendo o primeiro contato com a obra do escritor americano. Exceto esses leitores, o livro está indicado para todos os fãs deste escritor que marcou o século XX. 
O novo design da obra feito pela excelente editora Bertrand Brasil está mais clássico, charmoso e valoriza a assinatura do escritor na capa. Mas a maior assinatura está dentro de nós, ao terminar o livro e perceber que infelizmente não temos mais do escritor para lermos.

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Sobre o escritor: 
Ernest Hemingway nasceu em 21 de julho de 1899, em Oak Park, cidade próxima a Chicago, Estados Unidos. Viveu em Paris, Espanha e Cuba. Suicidou-se em 2 de junho de 1961, com um tiro de seu fuzil predileto. Residia em Idaho, estado americano que faz fronteira com o Canadá. Considerado pela Academia Sueca como um dos maiores autores de nosso tempo, Hemingway foi o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1954, feito em grande parte devido à sua obra-prima O velho e o mar (1952), que também foi vencedora do Prêmio Pulitzer de 1952. Sua prosa é admirada pelo seu estilo enxuto e despojado, com uso de frases e parágrafos curtos. Seu estilo é muitas vezes apontado como sua maior herança à Literatura e influenciou os padrões vigentes na época. Autor de uma obra prolífica, escreveu romances, contos, trabalhos de não-ficção e autobiográficos que foram publicados em vida ou postumamente.

Fontes:

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