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A compilação da posteridade de um dramaturgo esquecido



Relegado pelos leitores e estampado apenas em poucos livros didáticos ou poucas teses acadêmicas, eu me pergunto, "mas por que o injusto esquecimento de um dos pilares da literatura da nossa língua?"
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Mais de 4 séculos nos separam da obra do escritor português Gil Vicente.
Cleonice Berardinelli, professora e grande referência nos estudos de literatura portuguesa  propõe-se no livro Gil Vicente - Autos (Editora Casa da Palavra, 1ª Edição, 2012, 512 páginas, R$ 68,00) a uma luta onde ela pretende fazer quase um resgate a obra do poeta e dramaturgo, esquecido por muitos, lembrados por tão poucos.
Portugal, grande centro cultural que foi, e ainda o é, foi marcado pelo século do ouro. E foi neste período de efervescência cultural que Gil Vicente cultivou o gênero da dramaturgia.
A importância de Gil Vicente está além da poesia e da dramaturgia. Alguns críticos chegam a dizer que o conjunto de sua obra só é superada pela de Camões, o que eleva o escritor, de certo modo àqueles que gostam de literatura portuguesa. Gil Vicente exerce influência até hoje nos escritores contemporâneos. É impossível não ler ou assistir ao famigerado "Auto da Compadecida" e não perceber a forte influência do Gil na obra de Ariano Suassuna ou ainda na de João Cabral de Melo Neto.
Existem na praça outras antologias dos autos do Gil. Mas a diferença entre muitas delas e esta, organizada por Cleonice Berardinelli é que ela faz a empreitada com uma rigorosidade extrema. A critério dela, os textos mantém a grafia original nos autos, mas ao mesmo tempo foram acrescidas o "h" às formas do verbo haver. Assim posso afirmar que o que Cleonice faz é atualizar a obra do Gil.
Ele foi um poeta denso, no sentido mais estrito da palavra. Dramaturgo considerado o pai do teatro português,  transita entre temas sobre o tempo em que vivia. Escrevia para a corte, sob encomenda, mas sem deixar de atacar o clero, apesar de ser cristão. Malicioso, pessimista e com uma missão de reformador da moral da época, ele voltou-se para assuntos como a fidalguia, o rei, o velho devasso, a mulher adúltera e outros temas que escandalizavam a sociedade naqueles tempos.
Vasta é a produção do Gil. Mas Cleonice Berardinelli consegue em 512 páginas transcrever a síntese de pelo menos os mais de 9 mil versos do autor.
Ao longo do último século, Gil foi quase totalmente esquecido por aqui. A organizadora da antologia, ressentida, comenta: "Houve um tempo em que Gil Vicente era representado no Brasil. As plateias iriam divertir-se, os espetáculos poderiam ser precedidos de uma fala sobre ele". Destaca Cleonice.
Na antologia  encontramos obras que chegaram até nos de forma avulsa, como "Auto da Barca do Inferno", por exemplo. A Obra está compilada de tal forma a facilitar o manuseio, seja na hora da leitura, seja na hora do estudo acadêmico. São 4 partes, concluídas, como já de costume da autora, com ensaios da mesma e um glossário com muitas palavras que já não as conhecemos por falta de uso.
Na primeira parte, temos as "Obras de Devação". Aqui encontramos O "Auto da Barca do Inferno", "Auto da Alma", entre outros, sempre tão solicitados pelas listas de leitura dos vestibulares do país. Não à toa, os seus autos trazem ironia, sarcasmo e mostram como o autor desenrolava um tema tão meticulosamente. 

Em um de seus mais conhecidos Autos, o da "Barca do inferno", Gil satiriza a sociedade. Mas seu objetivo não é entreter com uma mera peça de teatro! Seu propósito é demonstrar como o ser humano é, muitas vezes, mesquinho no seu jeito de ser, falso e mentiroso, frágil de ceder aos apelos da carne ou do dinheiro.
São temas que, se lidos hoje, são equivocadamente atribuídos a um escritor de anos recentes. Mas não. Gil foi um escritor muuuuuuito além do seu tempo. Foi um autor perspicaz que teve a sensibilidade de captar as qualidades e defeitos do homem e transpô-las em sua obra.
A Segunda parte da Antologia, dedicada às "Tragicomédias", temos somente as duas "Cortes de Jupiter" e "Frágua d'Amor" e ainda assim, apenas fragmentos, o que foi para mim um ponto negativo da coletânea, pois eu pretendia conhecer um pouco mais dos textos menos conhecidos do portuga. Mas tudo bem. Adiante, na terceira parte da antologia, temos as "Farsas", na qual merece destaque a "De Inês Pereira", "De 'Quem tem farelos?'" e o famoso "Da Lusitânia". Este último eu ainda cheguei a ver uma péssima adaptação teatral na época do meu Ensino Médio, mas mesmo assim bem trabalhada em sala. A propósito, a obra do Gil é pouco divulgada até nas escolas, quando na verdade sua obra deveria ser destacada como o calco do teatro português.
Quem não conhece este trecho, não sabe nem reconhece a genialidade do Gil:

"Ninguém: E agora que buscas lá?

Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
         que tope com ela já.

Belzebu: Outra adição nos acude:
         escreve logo aí, a fundo,
         que busca honra Todo o Mundo
         e Ninguém busca virtude."

(Página 366)



A Quarta parte do livro é dedicada às "Comédias", na qual temos apenas o fragmento de "Rubena" e a "Carta de Gil Vicente ao Rei D. João III".
 A coletânea é encerrada com oito ensaios punhados pela própria Cleonice Berardinelli que nos dá uma dimensão de sua intelectualidade e influência quando o assunto é literatura portuguesa.
Não tenho dúvidas. O livro é um primor aos leitores de carteirinha da literatura portuguesa. 
Com uma diagramação de encher os olhos, fontes charmosas e um design digno de um clássico, a Editora Casa da Palavra mais uma vez presenteia o leitor brasileiro. De serventia para acadêmicos de Letras, Professores, alunos do Ensino Médio e demais leitores contemporâneos, o livro é uma antologia que deve ser visitada uma vez por outra. 
Assim, quem sabe, possamos cumprir o pedido do poeta e dramaturgo Gil Vicente em seu epitáfio, onde ele encerra não menos irônico declarando: "atenta bem pera mim/ porque tal fui com' a ti/ e tal hás de ser com' eu./ E pois tudo a isto vem/ oh, leitor de meu conselho, toma-me por teu espelho,/ olha-me e olha-te bem".
É a síntese de um Homem que deixou para a posteridade o que haveria de ser esquecido anos depois por uma geração de leitores que já não o lê. Mau sabia ele que o pedido seria recusado por tantos leitores 4 séculos depois... Porém o resgate feito por Cleonice põe em xeque-mate: é tempo de relê-lo e admirá-lo!
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