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Quando a bondade se torna idiotia

"É que certa estupidez de espírito parece ser às vezes uma qualificação necessária se não para todo homem público, ao menos para aqueles que seriamente se propõe ganhar dinheiro." Pág. 363                                                                     

        
De Dostoiévski já li
"Memórias do Subsolo" e o clássico "Crime e Castigo", onde pode-se perceber o grau de conhecimento da mente humana que o autor tem. Porém é em O Idiota (Martin Claret, Tradução José Geraldo Vieira, 678 páginas) que o escritor russo apresenta com maestria e em ritmo veloz o comportamento de um ser puro e quase santo diante de uma sociedade russa do século XVIII. 
A história gira em torno do tolo e ingênuo príncipe Míchkin, que com 27 anos, volta para Petersburgo apenas com a roupa do corpo e um pacote com mantimentos depois de uma longa estadia num sanatório suíço. Ao chegar na cidade, resolve visitar duas casas: a do general  Epantchin e da "louca" Nastássia Filíppovna. E é por essa última que o príncipe vai se apaixonar de imediato.
Durante sua permanência no país, Míchkin encontra pessoas de vários tipos, incluindo aqueles que julgam ter encontrado nele a doença denominada "idiotia". Daí, portanto, a origem do título do livro, pois uma pessoa boa como ele era considerado um idiota. 
O Idiota
Dostoiévski
Editora Martin Claret
678 páginas
Muito diferente dos dias de hoje? Talvez não... Míchkin mergulha fundo na crise familiar, política e social da cidade. Ele é um ser incrível, parecendo existir mesmo só na ficção, ou ainda exista atualmente, porém já quase em extinção. Mesmo sendo abusado e desprezado pela sociedade, ele é incapaz de cometer um ato pérfido, sórdido ou desumano. Um ser perfeito criado para uma sociedade suja... 
Lemos as 678 páginas do livro e assistimos a uma negociação pública de um noivado, tentativa frustrada de suicídio, dinheiro sendo arremessado ao fogo, um assassinato incompreensível e todas as reflexões e reflexos que o príncipe Míchkin faz a respeito de tudo que lhe convém. Além destes fatos, nos deparamos com outros acontecimentos que faziam parte do cotidiano da sociedade russa da época.

O príncipe mescla todas as qualidades de uma pessoa boa: ingenuidade, bondade, honestidade, sabedoria e o mais importante, ele não magoa ninguém. Epilético, assim como o autor do livro, o personagem sofre alfinetadas da sociedade, é desprezado, porém possui uma alta sabedoria. A sociedade não imagina que por detrás de um comportamento "pateta" existe um ser filosófico, culto e consciente. Por isso, fazem dele um fantoche.

A obra possui densidade psicológica típica de Dostoiévski. É aqui, neste romance, onde podemos encontrar suas características completas: muitas personagens, um humor sutil e perspicaz, longas histórias e análise da mente humana (uma característica genial do autor), que ele soube fazer muito bem em suas obras. É uma das melhores ficções de nossa literatura e é apontada pelo crítico americano Harold Bloom um cânone ocidental.
Embora o romance O Idiota tenha sido escrito num período conturbado da vida do artista, isso não impediu que a  obra alcançasse o sucesso que tem hoje. De inspiração na figura do cavaleiro andante Don Quixote e do mestre Jesus Cristo, o romance causou estranheza na sociedade corrompida que julga uma pessoa boa como um louco,  um sonhador ou simplesmente um idiota, como ele é constantemente chamado na história.

O livro, publicado em uma edição caprichada pela Editora Martin Claret traz uma tradução de José Geraldo Vieira. Quem é exigente quanto à tradução original, esta obra foi traduzida do francês, não diretamente do alemão. Mesmo assim, não há muitos pecados cometidos pelo tradutor, pois ele não compromete a obra, só torna-a mais acessível aos brasileiros a ponto de compreendermos tudo da história tal qual como ela é.

Não se entra por acaso numa obra dostoievskiana. Você lê sabendo da complexidade psicológica dos personagens e consciente de que algo vai acontecer com você. Pois como Otto Maria Carpeaux escreveu: "Dostoievski sabe perfeitamente o que quer dizer; mas não sabe sempre o que diz".
O escritor é uma súmula das angústias, incertezas e desesperos de uma humanidade cometida por uma realidade caótica. Quem lê Dostoiévski se depara com uma série de indagações presentes no interior de cada um. Portanto, fica o aviso, ler Dostoiévski, necessita de tempo, calma e reflexão. Por isso a demora em ler este livro.
Complexo, pungente, angustiante, impactante e sincero, a história de Míchkin talvez seja a trama (e drama) de todos aqueles que lutam e buscam construir um mundo melhor ainda acreditando na humanidade por meio de atos bondosos e uma mente sã. Mas no mundo atual, não  há idiotia que resista a tanta mordácia de valores corrompidos... Talvez até exista, mas com certeza esse ser será em algum lugar taxado de louco ou de IDIOTA...

Comentários

  1. Esses livros da Martin Claret são bem legais, clássicos... Gostei da estória da obra, é um pouco grosso mas deve valer a pena. Gostei da resenha.

    http://entrepaginasdelivros.blogspot.com/

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