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De quando uma amizade tem a extensão de uma vida


Sem prefácio, posfácio ou nota explicativa, o tijolão de 784 páginas conta a história de uma amizade sem limites. Um vida pequena (A little life, Hanya Yanagihara, Tradução de Roberto Muggiati, 2016, Editora Record, 784 páginas, R$ 59,60) imerge na vida íntima de 4 amigos e conta uma história cheia de comoções, drama e sofrimento, mas sobretudo a força de uma amizade.


Segundo livro da escritora americana (o primeiro foi “The people in the trees” que também retratou a amizade masculina) o livro foi finalista do Man Booker Prize e do National Book Award em 2015 e toca em assuntos sensíveis como abuso físico e sexual, morte e traumas. Estampou elogios nos melhores jornais e publicações literárias e esteve nas melhores listas como primeiro lugar.
A história é dividida em sete partes: I. Lispenard Street, II. Pós-homem, III. Vaidades, IV. O Axioma da Igualdade, V. Os Anos Felizes, VI. Caro Camarada e VII. Lispenard Street, onde cada uma delas funciona como um ciclo na vida dos personagens. 

O livro narra então a história (da infância até entraram na fase adulta) da amizade de quatro amigos recém saídos da Universidade que dividem o mesmo apartamento em Nova York: Willem, bonito, pobre (trabalha como garçom num glamouroso restaurante), amável, educado, querido por todos, aspirante a ator e tem um passado problemático com o seu irmão, que tem problemas mentais. Malcolm, rico, muito rico, filho de pai branco com uma afro-americana, arquiteto que trabalha numa grande empresa e se autodenomina como pós-negro. JB é negro, filho de imigrantes e também aspira a uma carreira como artista plástico. O quarto personagem e mais emblemático é o advogado e inteligentíssimo Jude, cujo passado é comovente, sofrido e doloroso. Jude se destaca pela sua angústia existencial em busca de sentido pela suas condições humanas e sofrimentos. Mas o companheirismo dos quatro homens e seus sentimentos retratam como uma amizade masculina pode ser forte. Ele trabalha num escritório de advocacia e com Willem vive um romântico relacionamento meio excêntrico, que exclui, por exemplo, o contato sexual.

A veia central do livro centra no percurso que os quatro amigos fazem da infância à fase adulta, assim como suas relações. Os quatro amigos almejam um sucesso profissional após saírem da universidade, possuem uma ambígua sexualidade e uma inteligência proeminente. A relação dos quatro amigos não é uma versão masculina do Clube da Luluzinha ou similares. Bem longe disso. Os amigos não se identificam como machistas num mundo selvagem. Três deles possuem laços fixos físicos e emocionais com outros homens e desafiam estereótipos e paradigmas sociais de seu tempo. Mas apenas JB, de forma ambivalente, assume uma identidade gay.
No começo do livro a autora apresenta cada voz dos personagens e a eles dão espaço, mas sobretudo é a voz de Jude, que de certa forma assume o caráter de protagonista da história e vai tomando espaço até predominar um derramamento de drama na vida dos quatro amigos. Se no início conhecemos os dramas e aspirações dos personagens desde a sua infância, a partir da página 170, mais ou menos, a autora abdica da vida dos outros personagens, tornando-os meros personagens secundários, para priorizar a vida de Jude, o personagem incógnito e melancólico.


Jude teve uma infância marcada pelo abandono, exploração e abuso. São esses traumas que vão perseguir a sua vida inteira e, de certa forma, permeiam a vida dos outros personagens. Jude foi encontrado num saco de lixo por monges e por eles foi criado. No decorrer da história, por meio de flash backs, sabemos que esses mesmos monges o abusaram. O espancamento e a sodomia frequente fazem com que Jude seja resgatado com muita frequência por assistente social, que mais tarde, reconhecendo o potencial intelectual do garoto, o acolhem num orfanato e tentam convencê-lo a concorrer a uma bolsa na universidade. Os abusos e todo o sofrimento fazem-se presente em todas as fases da vida de Jude: da infância à fase adulta. Essas situações deixaram-no tão abalado que ele se torna taciturno, cheio de traumas, frustrado, deprimido e com baixa autoestima. Fugindo de contatos pessoais, Jude, apesar de simpático e inteligente não consegue superar os traumas vividos, não consegue confiar em ninguém nem pedir ajuda ou esquecer. Ainda que ele possua amigos companheiros, Jude possui uma personalidade fechada, triste e negativa. Suas marcas no corpo denunciam como Jude tem um histórico emocional abalado que o impossibilita de ter sucesso na formação de uma família. 

Talvez soe ao leitor um pouco exagerado o excesso de sofrimento imprimido na vida de Jude pela mão pesada de uma escritora que parece sádica. Hanya Yanagihara não poupa o personagem nem o leitor. Contorcemo-nos, talvez choremos muitas vezes ao imaginar o drama. Leitor nenhum fica indiferente diante dos fatos narrados. Renunciamos a nossa posição de leitor e passamos a viver junto com os três amigos de Jude: levantando-o depois de uma crise, consolando-o numa tempestade de choro e acalmando ou motivando-o. torcemos e vibramos por dias melhores que se retardam e demoram a vir. É preciso, portanto, empatia para tanto. Jude é o retrato de uma vida que, de pequena, não teve. Diante de tanto sofrimento que lhe é imposto, não custa nada nos interrogarmos acerca do título.

Um romance monumental que trata com delicadeza de companheirismo, tolerância, amor, sexualidade e a dificuldade de viver num mundo onde as sensações de dor são exponenciais. As cobranças de uma vida adulta tornam tudo pesado, angustiado e melancólico.

Orgasmic man, de Peter Hujar
A autora, numa entrevista ao ElectricLiterature confessa que há qualidades de conto de fadas em sua obra. 
  
Este livro adere amuitas das convenções do conto de fadas clássico ocidental: há uma criança em perigo, que é feito para enfrentar os desafios em seu próprio país.
             
Se em sua essência, Hanya, dá um caráter de conto de fada ao livro, restava a ela dar ao pobre Jude uma vida menos infeliz. O bem contra o mal, retratado nas histórias de fadas, junto com a esperança e a falta desta fazem de “Uma vida pequena” um grande romance dos nossos tempos. Um romance que prima pelo critério onde a vítima tem que passar por inúmeras tribulações e sofrer muito, mas MUITO para comover o leitor.
         Não indicado para quem tem tendência ao choro fácil, o livro vale a pena por suas quase 800 páginas. Um salve à excelente edição da Editora Record, que preservando a mesma capa da edição americana traz uma tradução mais próxima da original pelas mãos do mesmo tradutor da obra de Fante.


Sobre a autora:
Yanagihara nasceu em Los Angeles, Califórnia de um pai que era um médico do Havaí e uma mãe que nasceu em Seoul . Ela se viajou muito pelos Estados Unidos como uma criança, devido à ocupação de seu pai. A família viveu em vários locais, incluindo o Havaí , New York , Baltimore, Maryland , Califórnia e Texas. Foi finalista do
Man Booker Prize e do National Book Award em 2015.

Curiosidades e Outros links:
 Fontes:
 Editora Record 
 

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