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"Um Retrato do artista quando jovem" faz 100 anos. Confira Resenha.




Fechado e aberto, o livro maduro de James Joyce é um labirinto de intertextualidade
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Levei quase um ano para ler o livro do Joyce. Isso porque eu havia iniciado algumas vezes e interrompia a leitura. Quando reiniciava, voltava pro início a fim de compreender a história. E essa luta para concluir o livro tornou-se uma determinação pessoal. Até que enfim conclui.
Do autor irlandês eu já havia lido os contos que compõem a obra "Dublinenses". Mas ler "Um retrato do artista quando jovem" foi uma experiência bem complicada.
Na verdade eu vou começar a resenha já indicando "Stephen Herói", o romance embrionário de "Retrato". Isso porque ele além de ter sido os primeiros rascunhos do romance Retrato, é nele que Joyce insere seu estilo inconfundível: o fluxo de consciência tão peculiar em suas obras. Porém, por problemas (fofocas literárias que não convém mencionar agora), o autor não pôde publicar Stephen Heroi e depois transformou a história no famoso Retrato, publicado como série na revista The Egoist entre 1914 a 1915. Após isto, o romance foi publicado em formato de livro em 1916. Então, podemos dizer que neste ano de 2016 o romance tem 100 anos de publicação.

  • Para fins didáticos, divido esta resenha do livro de Joyce em 4 partes. Espero que gostem da divisão e atentem para algumas notas de rodapé que eu pus no final da resenha.

1. O ROMANCE DE FORMAÇÃO


O termo Bildungsroman (1) foi cunhado por Karl Morgenstern (2), professor de filologia clássica, em uma conferência sobre “o espírito e as correlações de uma série de romances filosóficos”. Em 1820 o mesmo professor usou o mesmo termo referindo-se ao romance "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe. E a partir de então, o gênero alcançou a significação que a crítica literária entende classificar livros como "Em busca do tempo perdido", de Proust, "Sidarta", de Herman Hesse e "Retrato do artista quando jovem". No Brasill, temos "Angústia", do Graciliano Ramos, "O Anteneu", do Raul Pompeia e ainda "Memórias sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade. Existe muitas outras, claro. Podemos citar até Harry Potter. Isso porque Karl Morgenstern define o gênero "Romance de formação".
  • porque  ela representa  a formação do protagonista  em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade [...]. Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da  bela formação do homem,  sobressai-se [...] Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe,obra duplamente significativa para nós, alemães, pois aqui o poeta nos oferece, no protagonista e nas cenas e paisagens, vida alemã, maneira de pensar alemã, assim como costumes de nossa época. (Morgenstern, 1988, pp. 64/66) 

Assim sendo, romance de formação seria todo aquele em que há uma evolução da construção do personagem. Para Mikhail Bakhtin (3), James Joyce construiu em "Retrato" o tipo de romance de formação biográfico.



  • A formação se processa no tempo biográfico, passa por etapas individuais, singulares. Ela pode ser típica, mas esta já não é uma tipicidade cíclica. Aqui a formação é o resultado de todo um conjunto de mutatórias condições de vida e acontecimentos, de atividade e de trabalho. Cria-se o destino do homem, cria-se com ele o próprio homem, o seu caráter. A formação da vida-destino se funde com a formação do próprio homem (2003, p; 221).
Uma excelente interpretação do que seria Romance de formação foi feita por Miguel Salmerón, que assim se referiu ao gênero:


  • Com uma ênfase muito aristotélica o autor assinala que o romance deve ‘unificar sob um ponto de vista os principais eventos que ocorrem a um homem e enlaçá-los num todo de causa e efeito’. Esta poética da causalidade tem duas condições prévias. A primeira é a onisciência do narrador. Todo acontecimento permite uma dupla consideração: como efeito dos anteriores ou como causa dos posteriores. Em consequência, o escritor não pode aparentar que não conhece o interior dos seus personagens porque ele é seu criador. Outro dos elementos formais exigidos pela fidelidade causal é o caráter central de um personagem sobre os outros. Essa fidelidade ao contínuo causal vai acompanhada do elemento ético do ideal de perfeição (SALMERÓN, 2002, p. 45, tradução de Ana Maria del Rosario Lea-Plaza Illanes e Ronaldes de Melo e Souza).  

2. A GÊNESE DA PERSONAGEM STEPHEN DEDALUS


O crítico literário norte americano Harold Bloom considera Stephen Dedalus o narrador dos três primeiros contos da antologia Dublinenses. Isso porque a maneira como as histórias são contadas se assemelham com o estilo de "Retrato". Há ainda quem afirme ser o próprio alterego literário do autor James Joyce.
A etimologia do nome do personam que acompanhamos no decorrer das 254 páginas está no nome duplo: Stephen Dedalus.

A história bíblica conta que St. Stephen (Santo Estevão) foi um dos sete diáconos da Igreja Primitiva. Foi um importante pregador e foi julgado pelo Sinédrio, o mesmo Concílio que condenou Jesus à cruz. Estevão foi condenado por blasfêmia e apedrejado em praça pública. A hagiografia considera St. Estephen o primeiro mártir cristão.
Já o segundo nome do personagem nos remete ao mito grefo de Dédalo. E aqui nós vamos encontrar muito da significação do título do romance, já que Dédalo é a personificação da invenção artística. O nome Dédalo traz como significado hábil, criador e engenhoso. Dédalo foi um artesão e
Decorrente de um crime que cometera, Dédalo é feito prisioneiro pelo Estado e condenado à morte e cria apenas aquilo que está ao seu alcance. Ele acaba criando o labirinto de Cnossos, para conter a fúria do Minotauro, mas acaba sendo preso na companhia do filho no labirinto que ele próprio criara. Dentro deste labirinto, Dédalo cria um par de asas para ele e outro para seu filho, a fim de alcançarem a liberdade. No ar, seu filho, Ícaro, voa mais alto até chegar perto do sol, derretendo as ceras que ligavam as suas asas. Com isso, Ícaro despenca no mar.
É importante reportar estas histórias ao que nosso heroi de "Retrato" vai viver. A intertextualidade criada por Joyce alcança uma coerência que transforma a trajetória de Stephen num labirinto. É o que vamos ver a seguir, com a descrição do enredo.


3. O ENREDO

Por mais que o roteiro do romance não seja algo genial, o uso do fluxo de consciência (4) transforma este livro num clássico obrigatório para quem aprecia a boa literatura.


O livro está construído em 5 capítulos. No primeiro capítulo acontece os fatos da infância do frágil Dedalus, cuja infância é marcada pela religiosidade da mãe, que lhe ver como um padre. É essa convivência religisiosa que os padres vão moldando a mente do pequeno Stephen. Mais tarde, já adulto, vamos acompanhar a mudança de comportamento que se dá na criança. Como um carola, Stephen passa a frequentar a igreja fielmente. O segundo capítulo avança alguns anos, mostrando o garoto numa adolescência de amor e descobertas. O terceiro capítulo já apresenta a transformação que ocorre na personalidade de Dedalus. Ele se entrega à luxúria e à sensualidade. Este capítulo é importante, uma vez que vemos a passagem de uma fase religiosa da criança que ele foi para uma fase de sensualidade, inclusive ao mundo das prostitutas. Pela influência religiosa que ele carrega, Stephen Dedalus fica cego com a ideia de arrependimento e no quarto capítulo ele acaba por confessar ao padre todas as suas aventuras sexuais. Neste capítulo vemos o confronto que se dá no interior da mente de Dedalus: a sua virtual vocação sacerdotal e a vocação para as artes (pura referência ao mito de Dédalo). No quinto e último capítulo vemos Dedalus abandonando a sua familia e sua religiosidade, mas não a sua fé. Dedalus opta pelo mundo das artes e nele que ele vai se realizar. O chamado da arte fará da sua vida uma história épica e artística. A entrega de Dedalus à arte é o vôo que Dédalo  ousou fazer para sair do labirinto.
James Joyce criou um personagem esférico que representa a nossa natureza humana enquanto angústia de decisões e duelo de religião versus mundo. Como todo personagem bem criado, Stephen Dedalus é nós, com carne, osso, coração e uma mente cheia de arte.


4. O AUTOR

James Augustine Aloysius Joyce (1882 — 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância e um dos renovadores do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) - o que se poderia considerar um "cânone joyceano". Também participou dos primórdios do modernismo poético em língua inglesa, sendo considerado por Ezra Pound um dos mais iminentes poetas do imagismo.



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(1) Pronúncia ˈbɪldʊŋs.ʁoˌmaːn; em alemão: 'romance de formação' - Wikipedia
(2) MORGENSTERN, Karl. Über das Wesen des Bildungsromans (1820). In: SELBMANN, Rolf. (ed.) Zur Geschichte des deutschen Bildungsromans. Darmstadt : Wiss. Buchgesellschaft, 1988, p. 55-72 (Wege der Forschung, 640)
(3) BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(4) Para Humphrey: “podemos definir o fluxo de consciência ficcional como um tipo de ficção no qual a ênfase básica está na exploração dos níveis de consciência pré- discursivos, com o propósito, principalmente, de revelar o ser psíquico dos personagens.” (HUMPHREY, 1954, p. 04)


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Fonte:
Skoob - Wikipedia - Site do Pós Letras da UEL - UFRGS

Fotos da Edição publicada pela Editora Hedra

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