“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas...”.
É assim que Dickens imprime em Um conto de duas cidades (Tradução de
Débora Landsberg. 3 ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2016) constantemente
o uso de expressões como “tempos”, “época”, “idade” e “estação” para reforçar o
caráter histórico da obra, pois além de apresentar um período no qual os
oprimidos eram forçados a viver em condições precárias, também mostra a ternura
e violência das facetas humanas representadas nas personagens que ora são
ícones de uma época, ora são idealizações universais de cidadania e lealdade.
Lançada em 1859, não muito tempo passado a
Revolução da França, a obra é inspirada no livro História da Revolução Francesa, do historiador Thomas Carlyle,
publicado em 1837. Daí, então, inúmeras personagens (que não são poucas, uma
vez que Dickens faz desfilar diante do leitor uma enorme quantidade delas)
transitarem entre espaços londrinos e parisienses, fazendo-nos reformular
“nossa geografia psicológica”, como bem diz Virginia Wool ao comentar a
obra-prima do autor, David Copperfield.
Um conto de duas cidades é, portanto,
uma obra diferente das demais escritas pelo autor, que cultivara até então um
gênero de aventuras e romances regados a muito humor. Não que este último não
exista nesta obra, mas percebemo-lo de como sutil, como um elemento
desnecessário para um drama denso e pesado que é a história de Dr. Manette e
sua filha, contada desde os tempos finais de uma revolução americana até o
terror implantado na França pós-revolução.
Em 476 páginas, a obra divide-se em
três partes que comungam entre si, conectando os espaços, os acontecimentos
históricos das duas cidades (por isso o título do livro) e a relação das
personagens que, à maneira de um puzzle,
estão imbrincadas nos mesmos conflitos.
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Dr Manette e Lucie com Charles Darnay |
A aventura começa quando Lorry e Lucie, a
filha que não acreditava ter o pai ainda vivo, vai buscá-lo numa espécie de
refúgio da casa da família Defarge, membros que lideraram a Revolução e viviam
no subúrbio e revolucionário Saint Antoine. Dr. Alexandre Manette, preso injustamente
na Bastilha por 18 anos, virara sapateiro e carregará por muito tempo o trauma
da prisão. A partir dessa “volta à vida”, muitos conflitos surgem. Do lado
inglês, a família de Manette tenta se reestabelecer do trauma da prisão do
patriarca e os amigos Charles Darnay e Sidney Carton disputam o amor de Lucie;
Do lado francês, as Jacquerie e seus sentimentos de vingança derrubam tronos e
castelos dos aristocratas. Com a eminente revolução, crescem os casos de
julgamento e morte por traição, tanto em terras londrinas, quanto em Paris. Por
motivos de lealdade, logo após o casamento, o marido de Lucie, Charles Darnay,
é convocado por meio de uma carta a voltar à Paris. Lá, ele é preso, condenado
por traição à pátria, obrigando toda a família de Manette a voltar mais uma vez
à França para resgatá-lo, suportando julgamentos e conflitos pessoais que
envolvem até sósias.
No entanto, Dickens não concentra sua
narrativa em pessoas reais ou históricas. Nomes como Luiz XVI, Robespierre,
Marat ou Danton jamais são citadas, nem referenciadas. A Guillotine é a única
personagem histórica que ganha vida ao levar à morte os condenados. Na obra, o
autor opta por tratar esses conflitos individuais e familiares, deixando a
revolução como pano de fundo para o desenvolvimento da trama. Dickens narra as
prisões, julgamentos, condenações, violência, miséria e tortura, eventos
corriqueiros que aconteciam concomitante à Revolução, que pregava por
“Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, ou “Morte”, como ele acrescenta.
Outros acontecimentos históricos são
usados como artifícios para justificar atos de personagens, como a data do
decreto que torna criminoso os emigrantes na França, motivo pelo qual
justamente Darnay é preso; ou ainda as insurreições advindas de bairros que nas
tavernas planejavam as mortes e rebeliões.
Um
conto de duas cidades é leitura incontornável para quem pretende perceber
os desdobramentos históricos tratados em uma narrativa cheia de voltas e
revoltas. Mas não somente por isso, mas, sobretudo, para olhar o ponto de vista
dos oprimidos, dos revoltados, das minorias e populares que, em meio à miséria,
buscaram na insurreição uma forma de mudar o rumo da História.

Curiosidades e outras Informações:
- Um Conto de Duas Cidades foi publicado pela primeira vez em fascículos, no Al the Year Round, de 30 de abril a 26 de novembro de 1859, e em oito partes mensais de junho a dezembro do mesmo ano. O romance apareceu sob a forma de volume em novembro de 1859.
- O personagem Sidney Carton é um dos maiores ícones da literatura inglesa; é a primeira vez que é usado o nome de batismo de Carton. O manuscrito do romance mostra que a primeira escolha de Dickens quanto a esse nome foi Dick (ele não se decidiu por Sydney senão por volta da metade do presente capítulo, e então voltou atrás em seu manuscrito e alterou o nome). A escolha de Dick quase certamente reflete o nome do personagem caracterizado por Dickens em The Frozen Deep, Richard Wardour, mas também teria enfatizado o paralelo entre Charles Darnay e Dick Carton, dando-lhes iniciais invertidas. O nome Sydney origina-se de um tal de Algernon Sy dney (1622-83), que foi julgado perante o juiz Jeffrey s, acusado de cumplicidade no complô de Ry e House, sendo julgado culpado e executado.
- The French Revolution: A History, de Thomas Carlyle (1795-1881), livro que serviu de inspiração para Dickens, foi publicado pela primeira vez em três volumes em 1837. Na época da redação de seu romance, Dickens tinha em sua biblioteca a edição de dois volumes da narrativa de Carly le, publicada por Chapman and Hall em 1857.
- O manuscrito de Um Conto de Duas Cidades, preservado na Coleção Forster, no Museu Vitória e Alberto, revela que Dickens inicialmente pretendia que madame Defarge fosse uma “pequena mulher” absorvida em seu trabalho de costura. Ele apagou o parágrafo original e substituiu-o pela versão atual, na qual nós podemos vê-la tricotando. Essa mudança foi sem dúvida sugerida por uma lembrança das famosas tricoteuses, as patrióticas tricoteiras de Paris, que aparecem com destaque em The French Revolution, de Carlyle.
- Muitos dos lugares descritos por Dickens ainda existe;
- A personagem "Vingança": o uso de conceitos políticos ou morais como nomes pessoais não era incomum durante a Revolução. O exemplo mais notório é o do outrora duque de Orleans, que escolheu o nome de Philippe Égalité (“Felipe Igualdade”).
- O livro tem várias adaptações para o cinema, dentre elas a de 1935, 1958 e 1980.
Fontes:
Estação Liberdade / Edição da Editora Nova Cultural / Site Charles Dickens
Estação Liberdade / Edição da Editora Nova Cultural / Site Charles Dickens
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