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A pintura escrita de Londres por Virgínia Woolf



Mas antes que se diga que é um bom livro de crônicas, contos ou simplesmente "escritos", digo eu que fiquei chocado com alguns dados biográficos da autora que se encontram logo no prefácio do livro, preparado e escritor por Ivo Barroso.

Pois é, o livro Cenas Londrinas é uma compilação de escritos produzidos no período de 1931-1932 e são apenas seis textos que aparentemente não guardam em comum só o estilo woolfiano, mas sobretudo a temática que une-os: LONDRES. E é sobre isso que falaremos agora;

:D




Mais conhecida pelos romances Mrs Dalloway, Orlando e As Ondas, por exemplo, do que pelas suas crônicas, a escritora, ainda assim, imprime nas crônicas deste livro as marcas de seu estilo, vide as inúmeras metáforas que ela faz ao descrever um barco, uma rua, uma casa ou uma árvore, como se pode conferir nestes trechos:

"Os navios já não dispõem do espaço apropriado para esticar os membros. Jazem ali cativos, amarrados em terra firme como criaturas aladas pela perna ao pairarem nas alturas" (WOOLF, 2017, p. 23)

ou ainda nestas frases:

"Somos nós - nossos gostos, modas, necessidades - que fazemos os guindastes mergulhar e oscilar, que chamamos os navios do mar. Nosso corpo é o senhor deles" (WOOLF, 2017, p. 32)


Pois é dessa maneira que a escritora britânica vai narrando Londres, construindo memórias, reconstruindo espaços tendo por base suas incrível capacidade de descrição. Predomina nesses ensaios um narrador que não se faz nunca objetivo, mas cheio de metáforas, que leva o leitor rumo a lugares idílicos, mas também espaços em que vilas operárias e fábricas também ressurgem apresentando a população londrina. Assim, podemos perceber que Virginia Woolf retrata Londres diferente da belle époque*; é uma cidade onde o comércio fervilha, as relações mercantis são fortes e as ruas são desorganizadas e sujas. Portanto, não esperemos a descrição de uma Londres glamourizada.

Em "As docas de Londres", primeiro ensaio do livro, temos a descrição lindíssima de navios que percorrendo o Rio Tâmisa, atracam no porto da cidade, desembarcando diversos tipos de mercadorias de vários lugares do mundo. Foi desse capítulo que retiramos as citações acima. Embora o narrador retrate essa Londres desorganizada e de aparência suja, temos metáforas que transformam as águas do rio em algo belo.


O segundo ensaio, "Maré da Oxford Street", apresenta a transformação do comércio, onde as mesmas mercadorias que chegam nessas docas são aguardadas no posto. Ainda assim, permanece a descrição de um lugar cheio de algazarra, sujeira e celeuma. Como no ensaio anterior, a escritora encontra, em meio a esses espaços degradados, a poesia, o lirismo e a metáfora da vida que perpassa por "cenas londrinas" de modo tão sutil que poucos, como Virginia, conseguem perceber.

Nesse espaço em que a melancolia predomina, somos guiados por este narrador que incita-nos à reflexão, pois o leitor tende a imaginar conforme o narrador vai descrevendo a visão de Oxford Street. Com o fim do segundo ensaio, percebemos que há, entre este e o primeiro, uma forte coesão com o ensaio anterior, dialogando e completando-se.

O terceiro texto, "Casas de grandes homens" somos apresentados a figuras londrinas ilustres da época, como John Keats e Charles Dickens, por exemplo, mas também os famosos Carlyle, família a quem a escritora iria muito depois escrever um texto chamado "A casa de Carlyle". Toma conta deste terceiro ensaios o mesmo dos anteriores, mas há a descrição das casas para retratar a vida desses grandes homens.

Há no quarto ensaio do livro, "Abadias e Catedrais", como o nome sugere, uma polaridade entre a "simples" abadia de Westminster e a catedral de Saint-Paul. Virginia Woolf aproveita para descrever aqui uma nostalgia das arquiteturas antigas de Londres, bem como as suas ruas. Embora o texto seja um pouco melancólico também, a escritora ainda consegue captar o lirismo desse contraste.

Já no ensaio "Esta é a Câmara dos Comuns" a autora apresenta um panorama das disputas políticas, do desenrolar na vida das classes sociais mais abastadas e o consequente duelo entre elas.
Em "Retrato de uma londrina", último texto da antologia, é um texto que, de certa forma, estava avulso aos demais, uma vez que ele só foi achado em 2005 e só então incluído na coletânea junto com os demais textos na The London Scene, seleção já existente. Ironicamente, é neste que podemos constatar que a narradora é uma mulher, a Mrs. Crowe, que tem o hábito de ouvir fofocas e outras informações sobre seus vizinhos e outras pessoas.

Assim, o livro se assemelha a um quadro de pintura, recortado em várias facetas, onde no primeiro plano nos vemos os barcos e em seguida o cais, o porto, as ruas, a abadia, catedral, pessoas numa correria para em seguida adentrar nas casas luxuosas que a autora nos descreve. Das ruas de Oxford Street até os espaços particulares e íntimos que o livro nos expõe, podemos entender que, de fato, são as cenas londrinas.
É um livro sugerível para quem ama as cidades britânicas e para quem quer conhecer um outro lado da Woolf. Com excelentes comentários do Ivo Barroso, a editora José Olympio proporciona ao público brasileiro acesso a informações pouco discutida da vida da autora.  Com capa vintage, é um livro que me ganharia facilmente, mesmo que eu não tivesse lido.



SOBRE A AUTORA:

Virginia Woolf foi uma grande escritora e editora britânica, figurando entre os maiores nomes do modernismo. Nascida em 1882, Virginia teve uma vida de altos e baixos, pois sofria de transtorno bipolar. Entre suas obras mais conhecidas estão Mrs. Dalloway, Ao Farol e Orlando. Sua força literária é impressionante e seus livros de ficção são aclamados pela crítica, mas a Virginia ensaísta, cronista e contista ainda é desconhecida por muitos.




FONTES:

Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/5952/edicao:679154
Editora Record: http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=29693

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