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De Franz Kafka para Hermann Kafka

Como prometido, a carta famosa do mundo literário que trago neste mês é a do meu querido, amado e idolatrado (salve, salve) Franz Kafka.
O escritor tcheco de expressão alemã tinha uma relação conflituosa com o seu pai que tornou sua vida um tanto melancólica.
A carta ao Pai (Brief an den Vater), ao que tudo indica, nunca chegou a ser lida por seu pai. Kafka escreveu a Carta ao Pai em novembro de 1919. O motivo de seu pai não ter lido? Em primeiro lugar porque - dado o tamanho da carta Kafka chegou ao fim da sua licença de saúde em Schelesen sem tê-la terminado (só acabou de escrevê-la em Praga) e em segundo porque ela nunca foi entregue ao pai. Foi só no fim de novembro de 1919 que bateu o texto à máquina (provavelmente na repartição onde trabalhava, em Praga), deixando, por algum motivo, a última página escrita à mão. E assim, a figura do pai não chegou a ler...

Mas deixemos de enrolação. Vamos à carta.

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 “Querido Pai,


Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas conseqüências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.

De imediato eu só me recordo de um incidente dos primeiros anos. Talvez você também se lembre dele. Uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com certeza não de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaças severas não tinham adiantado, você me tirou da cama, me levou para a varanda e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada. Não quero dizer que isso não estava certo, talvez então não fosse realmente possível conseguir o sossego noturno de outra maneira; mas quero caracterizar com isso seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. Segundo a minha índole, nunca pude relacionar direito a naturalidade daquele ato inconsequente de pedir água com o terror extraordinário de ser arrastado para fora. Anos depois eu ainda sofria com a torturante ideia de que o homem gigantesco, meu pai, à última instância, podia vir quase sem motivo me tirar da cama à noite para me levar à varando e de que eu era para ele, portanto, um nada dessa espécie (...).”

"E mesmo esta tentativa de responder-te por escrito ficará inconclusa, porque, também ao escrever, o temor e os seus efeitos inibem-me diante de ti"

"Era para mim incompreensível tua absoluta insensibilidade pelo prejuízo e dor que podias causar-me com essas palavras e opiniões; era como se não tivesses consciência do teu poder. Com segurança, eu também te feri com palavras minhas, mas então eu o sabia e isso me causava dor, mas não podia controlar-me, arrependia-me ao mesmo tempo que a dizia. Mas golpeavas com tuas palavras à direita e à esquerda, nada te inspirava piedade, nem nesse momento nem depois; diante de ti ficava-se inteiramente indefeso". (...)

“Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante de do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência.” 
“Às vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em considerações apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho essas regiões não são muitas nem muito consoladoras e o casamento não está entre elas." 
(...) "eu perdi a auto-confiança, que foi substituída por uma ilimitada consciência de culpa"

"Perdi a confiança nos meus próprios atos. Tornei-me instável, indeciso. Quanto mais velho ficava, tanto maior era o material que você podia levantar como prova da minha falta de valor; aos poucos você num certo sentido acabou tendo realmente razão."

“Eu magro, fraco, franzino, tu forte, grande, possante. Já na cabine eu me sentia miserável e na realidade não apenas diante de ti, mas diante do mundo inteiro, pois para mim tu eras a medida de todas as coisas”.
(...)
“Eu teria precisado de um pouco de estímulo, de um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura para o meu caminho, mas ao invés disso você o obstruiu, certamente com boa intenção de que eu devia seguir outro. Mas para isso eu não tinha condição.” 
(...)
“A impossibilidade do intercâmbio tranqüilo teve uma outra conseqüência na verdade muito natural: desaprendi a falar. Certamente eu não teria sido, em outro contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. No entanto, logo cedo você me interditou a palavra, sua ameaça: “Nenhuma palavra de contestação”!" e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre...”


Franz


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Bem, carta é longa, como já foi dito no prelúdio desse post.
A mesma, óbvio, já foi publicada mundo afora por diversas editoras. Aqui no Brasil temos a Edição da Companhia das Letras, da L&Pm, Martin Claret e outras.
Vale a pena lê-la na íntegra.

Aos que tem conflitos paternos, então?
No próximo mês trarei um carta especial e famosa de natal.

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